Por Carlos Henrique Dias, Anselmo Caparica, g1 SP e TV Globo — São Paulo


Paulo Peregrino volta para casa — Foto: Carlos Henrique Dias/g1

Se essa história virar um livro, o título poderia ser: "O retorno do Peregrino". Quatro meses depois de deixar Niterói, no Rio de Janeiro, de UTI móvel, Paulo Peregrino, o paciente que passou por um tratamento considerado revolucionário no combate ao câncer, voltou para casa caminhando e trazendo as próprias malas.

O publicitário combatia o câncer havia 13 anos e teve remissão completa do linfoma em 30 dias com CAR-T Cell (entenda o método abaixo). Paulo estava prestes a receber cuidados paliativos quando, entre março e abril, foi o 14º paciente a ser tratado pela terapia, em São Paulo.

A técnica combate a doença com as próprias células de defesa do paciente modificadas em laboratório e faz parte de um estudo que usa verbas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Aos 61 anos, no último sábado, Paulo fez as malas e pegou um ônibus de São Paulo a Niterói com a esposa e uma prima dela. O g1 acompanhou as mais de 6 horas de viagem até o momento da chegada na casa.

Paciente com remissão total de câncer volta pra casa após 4 meses

Paciente com remissão total de câncer volta pra casa após 4 meses

Carregar as malas sozinho tem um significado importante ao publicitário. Em 2022, ele mal andava e não conseguia colocar o tênis, com o inchaço na perna direita.

Na porta, o filho, de 29 anos, esperava o pai. A cadela Aretha estava no quintal e só reconheceu o dono depois de uma cheirada e uma lambida.

Paulo recebe um abraço do filho, Gabriel — Foto: Carlos Henrique Dias/g1

"Quando você deita assim é porque está reconhecendo. Quando você deixa fazer isso [coçar a barriga] é porque está me reconhecendo", brinca Paulo.

O câncer de Paulo está em remissão. Os especialistas consideram "cura" depois de ao menos cinco anos sem indícios da doença.

Cadela reencontra Paulo depois de 4 meses — Foto: Carlos Henrique Dias/g1

Linha do tempo desde 93

Na escada a caminho dos quartos, vários retratos de pai, mãe e filho contam a história da família desde 1993, quando o Gabriel "foi gerado", brinca Ana Maria Peregrino, a esposa.

Ela mostra a sequência e havia um espaço ainda vazio com um adesivo escrito "2022".

"Eu fiquei na expectativa muito grande se eu iria conseguir completar esses quadros. Pra que a gente tivesse essa recordação", contou Ana, que enfim completou a coleção de fotos de família.

Paulo, Gabriel e Ana Maria com a coleção de fotos de 30 anos — Foto: Arquivo pessoal

Retorno às areias cariocas

Sem aparentar cansaço, Paulo fez questão de caminhar pelo calçadão da praia de Icaraí, a mais famosa da cidade. Mostrou a área onde joga vôlei com os amigos e reencontrou parte do grupo.

"Eu estou vendo a rede vazia porque hoje é domingo. Nosso jogo é sempre sábado. Acho que, quando eu tiver contato com a bola de vôlei, ou ela vai me morder ou eu vou mordê-la, porque a gente está completamente desentrosado."

"É como se estivesse recuperando o filme. Parece que o filme foi interrompido e 'pumba': pegar o filme de novo. Esse próximo episódio da minha vida vai ser um episódio de recuperação, no sentido de recuperar o espaço", comenta Paulo.

Paulo Peregrino volta à praia de Niterói — Foto: Carlos Henrique Dias/g1

Antes de voltar a Niterói, ele voltou ao hospital em São Paulo e conheceu a arquiteta Renata Vendramini. Ela é a 15ª paciente a receber o CAR-T Cell de forma compassiva. A infusão foi no sábado (8).

"Eu estou muito feliz, estava esperando muito por isso. É um tratamento longo. Graças a Deus estou superbem", afirmou a paciente.

Renata tem um linfoma perto do olho esquerdo diagnosticado há um ano. As sessões de quimioterapia até diminuíam temporariamente o inchaço no rosto, mas o câncer continuava.

"Começou a crescer, começou a inchar e é um linfoma infiltrativo, então é bem perigoso é bem agressivo", contou Renata.

Paulo e Renata se encontraram no hospital — Foto: Arquivo pessoal

Os pacientes que fizeram parte da pesquisa são considerados "compassivos", ou seja, já tinham feito vários tipos de tratamento, mas não tiveram resposta positiva. Vanderson Rocha, professor de hematologia, hemoterapia e terapia celular da Faculdade de Medicina da USP e coordenador nacional de terapia celular da Rede D’Or, está à frente dos casos de Paulo e Renata.

"Esses novos tipos de tratamento atualmente reservamos para aqueles casos mais graves, porque não sabemos como vai atuar. É claro que no futuro essa nova terapia poderá ser utilizada numa linha anterior do tratamento", explica o médico.

CAR-T Cell brasileiro

No total, 15 pacientes participaram da mesma pesquisa com a terapia experimental que Paulo passou. O método tem como alvo três tipos de cânceres: leucemia linfoblástica B, linfoma não Hodgkin de células B e mieloma múltiplo, que atinge a medula óssea. O protocolo contra mieloma múltiplo ainda não está disponível no país. 

  • 10 dos 15 pacientes estão vivos;
  • 6 tiveram remissão completa, e a doença não voltou;
  • 2 tiveram remissão completa, mas a doença voltou depois de alguns meses;
  • 2 iniciaram o tratamento recentemente;
  • 5 pacientes morreram;
  • 2 morreram poucos dias depois da infusão por infecções causadas pela própria doença;
  • 2 tiveram remissão parcial ou total dos tumores, mas morreram meses depois porque o câncer voltou.

Vamberto Luiz de Castro, o primeiro paciente a realizar o tratamento em 2019, teve remissão total, mas morreu pouco tempo depois em um acidente doméstico.

O coordenador da pesquisa e do Centro de Terapia Celular CEPID-USP e do Núcleo de Terapia Celular do Hemocentro de Ribeirão Preto, Dimas Covas, quer ampliar os estudos no mês que vem.

"Continuamos, sim, com a inclusão de pacientes com estudos compassivos e esperamos em breve ter autorização da Anvisa para iniciar o estudo clínico. Estudo clinico de fase 1 e fase 2 que pretenda incluir 81 pacientes. Esperamos aprovação ainda em julho para que em agosto possamos iniciar esse estudo mais abrangente."

O que diz a Anvisa

Segundo a Anvisa, em nota nesta terça-feira (11), diz que aguarda as últimas documentações dos desenvolvedores e mantém as discussões com as equipes e continuará a "dedicação para promover o mais rápido possível as condições regulatórias para o início dos ensaios clínicos".

"O referido processo está priorizado na Agência, que tem disponibilizado equipes dedicadas de forma a acelerar o início do ensaio clínico, com segurança e com foco em produzir dados confiáveis para uma futura aprovação para uso populacional, a depender dos resultados obtidos.

Os pesquisadores da Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto (HRP) em parceria com o Instituto Butantan estão desenvolvendo um produto de terapia gênica do tipo CAR-T que pretende modificar geneticamente células T (de defesa) do paciente para combater células tumorais, como tratamento para determinados tipos de leucemias e linfomas. O produto está em fase de finalização de estudos pré-clínicos, ou seja, faltam ainda dados de segurança e qualidade a serem obtidos, bem como finalização do processo de produção para uso do produto em humanos.

Neste sentido, considerando o avanço dos estudos, a relevância como desenvolvimento nacional para o Sistema Único de Saúde, a Anvisa, por meio de edital público de chamamento, publicado em novembro de 2022, selecionou o projeto do produto de HRP/Butantan, para aplicar processos de cooperação e aceleração de avaliação regulatória.

Assim em janeiro de 2023, foram submetidos pelo HRP/Butantan para a Anvisa os primeiros documentos do projeto.

A partir daí, inúmeras reuniões e avaliações começaram a ser realizadas entre Anvisa e as equipes de pesquisadores das instituições relacionadas. Foi adotado um processo de submissão contínua de documentos, ou seja, à medida que as empresas produzem os dados e organizam as documentações são submetidas a Anvisa.

Neste processo a Agência vai avaliando e contribuindo simultaneamente ao desenvolvimento do produto. Também estão participando desta avaliação regulatória os integrantes do Comitê Técnico de Terapias Avançadas da Anvisa, por meio da Rede Nacional de Especialistas em Terapias Avançadas (RENETA), como consultores ad hoc, com reconhecida expertise no assunto."

Paulo Peregrino antes da alta em São Paulo — Foto: Sandro Queiros/TV Globo

Paulo - antes e depois

Exames mostram antes e depois de câncer de paciente; à direita, imagem mostra remissão da doença — Foto: Arquivo pessoal

As duas imagens do Pet Scan (tomografia feita com um contraste especial ) (veja acima) representam “dois Paulos”: a da esquerda, o paciente que tinha como caminho único os cuidados paliativos, quando a alternativa é dar conforto, mas já sem expectativa de cura, e a da direita, um paciente com um organismo já sem tumores após o CAR-T Cell.

“Foi uma resposta muito rápida e com tanto tumor. Fico até emocionado [ao ver as duas ressonâncias de Paulo]. Fiquei muito surpreso de ver a resposta, porque a gente tem que esperar pelo menos um mês depois da infusão da célula. Quando a gente viu, todo mundo vibrou. Coloquei no grupo de professores titulares da USP e todo mundo ficou impressionado de ver a resposta que ele teve”, comemorou Vanderson Rocha, anteriormente sobre os exames de Paulo.

Quando o médico teve contato com Paulo, o publicitário já havia passado por procedimentos cirúrgicos, dezenas de exames e quimioterapia.

Médico Vanderson Rocha (à esq.) e Paulo Peregrino (à dir.) — Foto: Arquivo pessoal

Custo de R$ 2 milhões por paciente

A técnica é utilizada em poucos países. No Brasil, no segundo semestre, dezenas de pacientes devem ser tratados com o CAR-T Cell com verba pública após autorização da Anvisa para o estudo clínico.

Atualmente, o terapia só existe na rede privada brasileira, ao custo de ao menos R$ 2 milhões por pessoa.

"Devido ao alto custo, este tratamento não é acessível em grande parte dos países do mundo. O Brasil, por outro lado, encontra-se em uma posição privilegiada e tem a rara oportunidade de introduzir este tratamento no SUS em curto período de tempo", diz Dimas Covas.

Saiba o que é a terapia celular contra o câncer aplicada em estudo na rede pública

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13 anos 'tocando em frente'

Uma linha do tempo ajuda a nortear as idas e vindas dos tumores de Paulo (veja abaixo). A família é de Recife, mas se mudou para o Sudeste na década de 70. Ele é o caçula entre 10 irmãos. Foi o primeiro a enfrentar a doença.

Livro no leito e cegueira temporária

Em 2020, a pandemia de Covid isolou Paulo num quarto de hospital. Ele tinha passado por um transplante de medula óssea.

Sem acompanhantes, sozinho, no entanto, não ficou. Pediu à enfermeira os contatos dos pacientes de quartos vizinhos e criou um grupo por WhatsApp, o “TMO Juntos” (trocadilho de "transplante de medula óssea" com TMJ de "tamos juntos”).

O grupo era formado por ele, um idoso com a esposa e uma adolescente de 17 anos, que dividiram histórias, se motivaram e trocaram músicas durante o isolamento.

Paciente chegou a participar de campeonato de vôlei de praia — Foto: Arquivo pessoal

Dentro dos 30 dias, Paulo fez o pré-lançamento de "Brizola e eu", um livro “banhado” a álcool e autógrafos. O esquema era: a esposa entregava os exemplares à enfermeira, o álcool higienizava os livros, ele assinava, e os exemplares eram levados para amigos e parentes.

O livro conta a biografia de Jecy Sarmento, um dos principais assessores e amigos do ex-governador Leonel Brizola.

O fim daquele ciclo na internação foi marcado por um bolo levado como surpresa pelas enfermeiras.

A contaminação por Covid veio em 2022, durante uma internação devido a uma queda nas plaquetas — quanto menor a contagem delas, maior o risco de sangramento intenso. A tosse forte causou uma hemorragia interna nos dois olhos e uma cegueira temporária de três meses.

“Foi a pior sensação da minha vida. Fui em três médicos e só o terceiro disse: ‘Vamos operar e retirar essa hemorragia do seu olho.”

Mudança de tratamento

Internação para transplante de medula em 2020 — Foto: Arquivo pessoal

Pesquisas na internet levaram a família ao CAR-T Cell e ao médico Vanderson Rocha.

“Comecei a acompanhá-lo quando já tinha feito uma grande parte do tratamento. A doença voltou, então, a última opção dele realmente era o CAR-T Cell. Tive que pedir autorização da Anvisa pra gente poder fazer esse tipo de tratamento. Muitos pacientes não têm essa oportunidade”, afirmou o especialista.

Paulo lembra que teve febre no primeiro dia em que as células modificadas foram aplicadas no corpo, e chegou a ir para a UTI para ser monitorado.

"Senti um pouco de dormência nas mãos, mas tive acompanhamento antes, durante e depois por toda a equipe multidisciplinar do HC, em São Paulo."

Apesar da remissão da doença em um mês, entre março e abril deste ano, Paulo deixou para novembro a “festa da cura”.

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